Necrópole Goiânia

A Chalaça da Desafetação

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Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga,

gorducha, redonda, franca, sem biocos,

nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada,

 faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios.

Usa a chalaça. Que é isto?

Machado de Assis, Teoria do Medalhão

Não é incomum, em nossa cultura legislativa, que vereadores e deputados aprovem matérias sem o devido conhecimento, optando pelo caminho fácil do alinhamento com o poder executivo. A leitura das 306 páginas do processo produzido pela Comissão de Habitação e Urbanismo da Câmara pode parecer, no primeiro momento, um exercício enfadonho. Mas esse exercício é necessário, especialmente por possibilitar a compreensão dos meandros do processo que envolve a votação do PL-50, que desafeta áreas públicas municipais.

O ponto chave dessa discussão passa pela compreensão das demandas e das prioridades de investimento do Governo Municipal. Em 2010 existiam em Goiânia, distribuídos nos mais de 630 bairros, 238.955 imóveis prediais particulares e 117.057 imóveis territoriais (lotes vagos) particulares. O total de imóveis prediais públicos era de 1.028 e de imóveis territoriais públicos foi de 10.360. A distribuição das áreas públicas (lotes) no espaço intraurbano impressiona, uma vez que, segundo dados do Governo Municipal (2010), em 189 bairros não existem lotes públicos, em 63 bairros existiam apenas 01 lote público, em outros 50 bairros existem dois lotes públicos e em outros 46 bairros apenas 03 lotes públicos. Esses dados são a demonstração inequívoca de que não dispomos de estoque de áreas públicas suficientes para as demandas da cidade. Já os 117.057 lotes vagos privados somam uma área de 128.244.823 metros quadrados, a maior parte localizada em áreas com infraestrutura urbana e serviços públicos consolidados e passíveis, a depender da vontade do Governo Municipal, do IPTU progressivo. Cada vereador, cada administrador da cidade, deveria possuir, ao lado das fotos de autoridades que preenchem seus gabinetes, a reprodução do mapa dos lotes vagos e do mapa dos vazios urbanos que acompanham o Plano Diretor do município de Goiânia. Só assim poderão compreender o impacto negativo de projetos com a matriz política do PL-50.

            Uma das evoluções do Estatuto das Cidades foi a separação do direito de propriedade do direito de construir. Isso significa que o proprietário de um terreno ou uma gleba não pode fazer aquilo que quer em sua área, pois a função social da propriedade, estabelecida no Plano Diretor, deve predominar. E ai esta o nó górdio do PL-50. Não basta desafetar áreas, é necessário quebrar as normas que regulam a densidade dessas áreas para torna-las atrativas. O Artigo 8º do PL-50 é uma síntese perfeita dessa estratégia: “Fica admitida a autorização aprovação de Projetos Diferenciados de Urbanização, na modalidade PDU-I, para as áreas subscritas no artigo 1º, desta Lei Complementar”. O que isso significa? O modelo espacial do Plano Diretor determina 5 níveis de adensamento para Projetos Urbanos Diferenciados. Aquele de maior adensamento (alta densidade) deveria ser implantado, exclusivamente, nos Eixos de Desenvolvimento Preferenciais (Rodovia GO – 070, Av. Pedro Ludovico, Corredor Anhanguera, Goiás Norte etc.) e nos Eixos de Desenvolvimento Exclusivos (Anhanguera, Goiás, Mutirão, T-9 etc.). A mudança no adensamento, exigência do mercado imobiliário, tornou o negócio solvável – o céu, literalmente, será o limite.

O PL-50 prevê a desafetação de áreas nos bairros Portal do Sol (60.632,62 m2), Jardim Goiás (7.599,45 m2), Parque Lozandes (106.441,11 m2), Setor Bueno (4.795,06 m2), Setor Universitário (5.639,25 m2), Jardi Humaitá (10.525 m2), Brisas do Cerrado (16.503,04 m2), Colorado Sul (1.957,19 m2) e Moinho dos Ventos (10.392,49 m2). A maior parte das áreas (74%) será destinada ao mercado privado, uma pequena fração aos órgãos públicos e/ ou permutas. Devido a natureza particular de cada desafetação, bem como dos usos primitivos, seria prudente a fragmentação do PL-50, fato que não ocorreu, já que tal estratégia não surtiria os efeitos desejados pelo Governo Municipal. O atacado esconde o varejo. Em 27/01/2012, o Ministério Público do Estado de Goiás produziu denuncia de improbidade administrativa sobre o processo de desafetação de 70 áreas públicas, 33 da quais acrescidas pela Câmara Municipal, assim que recebeu o projeto. A leitura documento, indispensável para aqueles que querem compreender o assunto, condenou a natureza do projeto. As alterações efetuadas pelo Governo Municipal, desde então, soam mais como adequações da conveniência, já que a essência do projeto continua a mesma. Como consta no processo da 8ª Promotoria de Justiça: “A alienação de bens públicos deve ser entendida como medida de extrema e ultima ratio, precedida, quando presente, de interesse público...”. A redução do número total de áreas não anula a essência do PL-50. Será que o dolo, cujo conteúdo esta explicitado com veemência na ação Ministério Público do Estado de Goiás, não permanece no PL-50?

Por mais de uma vez, em audiência publica realizada no IESA-UFG, os representantes do Governo Municipal utilizaram-se de chalaças para defender o PL-50. Quando colocadas no mercado, insistiram em defender essa tese, todos terão oportunidade de adquirir essas áreas. De fato, em uma cidade com progressivo déficit habitacional, com ausência de equipamentos públicos em inúmeros bairros, com serviços de péssima qualidade e equipamentos de lazer depredados, tal argumento só pode soar como chalaça de alguns medalhões.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Texto escrito por Tadeu Alencar Arrais

Originalmente publicado em O Popular, Cidades, 22/04/2014