A dinâmica de uso do solo urbano é fortemente influenciada por dois processos: o primeiro é a centralidade, que pode ser definida como a disposição diferencial no espaço urbano de serviços públicos e privados, bem como empreendimentos de consumo geradores de emprego. O segundo processo é a mobilidade, o que permite, a partir da disposição de infraestrutura de transporte, o maior ou o menor acesso das pessoas às diferentes centralidades. É esse balanço entre centralidade e mobilidade que torna uma região mais ou menos valorizada imobiliariamente.
O conceito de gentrificação foi utilizado para designar o processo de requalificação (enobrecimento) dos distritos operários de Londres. Áreas em que esse balanço (mobilidade e centralidade) eram positivos, por assim dizer. Lá, como aqui, requalificação implicou em mudança de uso do solo. Mudança que, não raras vezes, resultou no deslocamento daqueles que usavam os referidos espaços, motivo pelo qual a remoção dos pobres, na maioria das vezes, sempre acompanhou o processo de gentrificação. A forma espacial da gentrificação é a da homogeneização por cor, classe, renda. Em geral, portanto, o conceito de gentrificação foi aplicado ao contexto dos grandes centros urbanos. A literatura, atualmente, utiliza esse termo para diferentes contextos urbanos, dotando-o de certa negatividade, uma vez que esse conceito é refém da história urbana. A questão central, entretanto, passa por compreender como as políticas de gentrificação afetam a cidade, de uma forma global, e os grupos sociais, de uma forma específica.
A primeira questão é pensar quem são os atores sociais responsáveis pela remodelação das áreas urbanas. No Brasil, os governos municipais podem, de diferentes modos, regular o uso e a ocupação do solo. Então podemos dizer que o governo municipal é um ator central nessas transformações, o que pode ser exemplificado pela mudança de leis de uso e regulação do solo e também das normas urbanísticas. Ocorre que essas mudanças não são aleatórias. Há grupos de atores sociais que enxergam, com perspicácia, as dinâmicas urbanas e podem agir em escalas temporais diferentes de outros atores sociais. Segmentos do mercado imobiliário podem, por exemplo, imobilizar capitais para segurar determinadas glebas de terras para parcelamentos futuros, enquanto induz os governos (estadual e municipal) a investir recursos públicos nessas áreas, especialmente na infraestrutura urbana. Essa visão global da cidade é que torna a estratégia imobiliária eficaz para o mercado imobiliário e para os governos, mas não para o conjunto da cidade, isso porque essa estratégia cria, cada vez mais, uma cidade fragmentada, cuja marca maior é o divórcio entre mobilidade e centralidade – não é por acaso que pesquisas do IBGE demonstram que o tempo de deslocamento (casa-trabalha, casa-estudo) tem aumentado.
O estado, por meio da distribuição de amenidades no espaço intraurbano, valoriza e requalifica os espaços. Interessante como a algumas regiões de Goiânia passaram por mudanças. Contudo, seria ingenuidade imaginar que esse processo é novo. Seria ingenuidade olhar para a região do Jardim Goiás é imaginar que isso é algo novo, que não havia sido preparado para isso. É sempre bom lembrar que Goiânia foi, desde o início, um grande patrimônio. Essa imagem de Goiânia como um grande patrimônio coloca reticências na ideia de que a cidade foi edificada em um espaço livre de conflitos, desocupado, romantismo que não resiste à análise crítica. Mas vamos citar três exemplos, no caso de Goiânia, que tem relação com processos de requalificação do uso do solo.
O primeiro exemplo
A Lei Complementar número 224, de 16 de janeiro de 2012, descreve inúmeras áreas para desafetação no Park Lozandes, entre outros bairros da cidade. Existem várias áreas de 6, 10, 11, 12, 16, 18 etc. mil metros quadrados. E o que dizer da área do Batalhão Anhanguera, no setor marista, cuja desafetação é protagonizada pelo governo estadual? Ao contrário do que ocorreu em outros lugares do mundo, em virtude da escala e da tradição de cada cidade, a gentrificação, aqui, se é possível utilizar esse termo, é pontual e redundante. Pontual porque é dispersa, redundante porque o estado valoriza, ainda mais, áreas que já são valorizadas imobiliariamente. Áreas em que o balanço entre mobilidade e centralidade é positivo. O que nos escapa, mesmo, é que isso é uma antipolítica urbana que quer parecer pontual, mas que atinge a cidade de forma global. Só quem não conhece a BR-153, no final das tardes, pode acreditar que a densificação não irá piorar o já caótico trânsito da região do Park Lozandes.
O segundo exemplo
A Operação Urbana Consorciada (OUC) do Jardim Botânico. Esse tipo de intervenção é ainda mais explícita, uma vez que o protagonismo é da iniciativa privada. Algumas incorporadoras, inclusive, já adquiriam lotes nas quadras no perímetro do Jardim Botânico. As características de conforto ambiental e da acessibilidade, que já estão sendo gestadas pelo marketing imobiliário, elevarão o valor do metro quadrado. Mas nem todo o recurso drenado pelo executivo municipal e pela iniciativa privada será capaz de domar a geografia da região. Para quem conhece a região, sabe que os problemas do tráfego só vão piorar com o adensamento, uma vez que a região é quase um funil de acesso às áreas já densas do sul e sudeste da capital, além de Aparecida de Goiânia.
O terceiro exemplo
O patrimônio histórico de Goiânia pode ser traduzido na relação entre a forma do plano (radioconcentrico) e a distribuição dos edifícios (art déco). O centro, por definição, já é dotado de centralidade (comércio especializado, serviços públicos e privados, equipamentos de lazer etc.). Mas o que ocorre com o centro? O que faz, por exemplo, o centro perder população a cada dia? O no lugar de um local aprazível, com estímulos sensoriais positivos, o que vemos no centro é acúmulo de lixo, pichações, dificuldades de estacionamento, problemas de acessibilidade nas calçadas, privatização dos espaços públicos (a exemplo das várias vielas ao longo da Avenida Goiás), apropriação das fachadas por propaganda etc. Por qual motivo, por exemplo, a inciativa privada não poderia financiar uma política de revitalização do centro? A resposta é simples. O centro já possui uma ocupação cristalizada, que demanda ações de natureza regulares para lidar com problemas que envolvem toda a cidade. Portanto, é melhor investir, vender a ideia de que o residencial o Jardin de Luxemburgo (não duvido que tal epíteto brote, no futuro próximo, da prancheta de algum marqueteiro, com o fito de demonstrar as amenidades do já requalificado Jardim Botânico!) é um ponto isolada na cidade, um enclave no meio da selva urbana. Uma oportunidade única de negócio. Não se trata de um ledo engano.
Tadeu Alencar Arrais
Professor Associado do IESA/UFG