“Longe da ficção, com projetos formulados a partir de pensamentos sistemáticos fundados em bases racionais, vamos fazer com que o tempo, com a sabedoria que só ele traz, mostre que estamos no caminho certo. É só esperar para ver.” (Paulo Cesar, Opinião, O POPULAR, 21/5/2014).
Nunca deixei de escutar conselhos, ainda que sejam ancorados por citações garimpadas na internet. Mas confio que Paulo Cesar, secretário de Desenvolvimento Urbano Sustentável, seja um assíduo leitor de Tales de Mileto, motivo pelo qual reproduzo aqui um fragmento do artigo (O problema do senso comum) publicado nesse mesmo espaço. O secretário escreve que o filósofo, bem antes do nascimento de Cristo, “já nos ensinava que o que há de mais veloz é o pensamento, mas o que há de mais sábio é o tempo, porque é ele que tudo revela. Tales também usou aforismos para provar que muitas palavras não indicam necessariamente muita sabedoria”.
Segui o conselho. Esperei vários dias para que o tempo provasse que os argumentos descritos em outro artigo (O lixo e a pedagogia da chantagem), também publicado nesse espaço, não passavam de falácias de alguém, tal qual meu interlocutor sugeriu, desprovido de sabedoria. O que mais incomodou no texto, para além do compromisso partidário que tudo cega, foi a visão preconceituosa em relação ao senso comum. A tentativa discursiva foi estabelecer uma clivagem entre um discurso técnico, baseado em uma pretensa autoridade, e um discurso vulgar, resultado da experiência. A tentativa, como sempre, é de desqualificar toda e qualquer experiência urbana cotidiana em nossa capital. Essa mesma receita foi utilizada, no último dia do mês de maio, pelo prefeito Paulo Garcia, em entrevista ao Jornal Anhanguera. A lista de problemas levantados pelo jornalista Marcelo Rosa, apoiados em imagens e depoimentos de pessoas comuns, pareceu não sensibilizar o prefeito, que insistiu em argumentar que a cidade sustentável caminha no rumo certo.
Vejamos apenas um exemplo. O Decreto 1.248, assinado pelo prefeito, suspende direitos adquiridos pelo funcionalismo público. Antes que outro secretário apareça para acusar essa interpretação de falaciosa, cito na integra três artigos do referido decreto, que proíbe: VII – promoção ou progressão funcional, linear ou vertical; IX – a inclusão na folha de pagamento do mês de diferenças salariais relativas a meses anteriores; XIII – realização de concurso público, bem como seleção para admissão de pessoal temporário. Se isso não é eleger o funcionalismo público como vilão, então todas as demandas dos professores, da guarda civil e dos agentes de trânsito são, tanto quanto minha escrita, ficcionais.
Mas esse argumento não é novo, bastando para isso lembrar que o conceito de senso comum sempre carregou uma conotação pejorativa. A percepção dos problemas do cotidiano pelos homens comuns sempre foi relegada ao segundo plano, especialmente pelos burocratas. Esse discurso, que condena as bases ao ostracismo político, é reproduzido, quando convém, pelo Partido dos Trabalhadores. É intrigante que um partido que investiu no Orçamento Participativo, como forma de inserção dos comuns na gestão da cidade, reproduza uma visão carregada de tanto preconceito.
É contra essa racionalidade que moradores do Residencial Humaitá, em regime de mutirão, construíram uma praça em área pública que o governo municipal pretende vender. As curvas da pista de caminhada de 1.100 metros contrapõe a ordem técnica e racional que move as ações do governo municipal. O playground, o campo de futebol de terra batida, as dezenas de frutíferas plantadas e regadas todos os dias pela comunidade, por si só, são evidências da força criadora do senso comum. Uma força sem igual que ilustra a contra-racionalidade criadora já descrita pelo geógrafo Milton Santos. Por isso mesmo, naquele dia, despi-me da confortável competência técnica, assegurada pela titularidade acadêmica (graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado) e, de posse de ferramentas comuns, ajudei a comunidade a erguer uma pequena praça pública. Aquela experiência, mesmo com as tentativas de intimidação, inclusive com notificações formais do governo municipal, demonstrou que os comuns podem determinar seu destino e defender, com intransigência, o espaço público. Nenhum burocrata gosta disso, já que acreditam que o destino dos comuns passa, obrigatoriamente, por seus gabinetes confortáveis.
Mas não tenho dúvidas que essa praça, em nome de uma gestão que age a partir de pensamentos sistemáticos e racionais, será colocada abaixo por um maquinário tão pesado quanto a chibata de um feitor. Os canteiros permeáveis de frutíferas darão lugar a calçadas impermeabilizadas por concreto que, por sua vez, aumentarão o escoamento superficial para o Córrego Caveiras, causando danos ambientais irreparáveis para a cidade sustentável. A sombra da aroeira nativa, que resistiu ao parcelamento primitivo, dará lugar aos espigões em homenagem a cité radieuse, bastião do racionalismo urbano. A intenção é lembrar para a comunidade quem realmente manda nessa cidade. Isso não é ficção. Não é literatura. Não é especulação. É só esperar para ver.
Tadeu Alencar Arrais é professor associado do Iesa/UFG
tadeuarraisufg@gmail.com