Necrópole Goiânia

De Jack para Goiânia

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De Jack para Goiânia

Trabalhar sempre sem brincar faz de Jack um mau rapaz.

Ditado popular, muito comum na Inglaterra vitoriana, citado por L. Mumford

A boa etiqueta ensina que é sempre bom, ao ser convidado para uma festa, não se esquecer dos regalos. O cuidado é maior quando o convite é feito por uma debutante. Goiânia é uma debutante, especialmente quando consideramos cidades como Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo, Belém, Belo Horizonte, isso para não citar Paris, Londres ou mesmo Lisboa. Mesmo antes do esperado baile de aniversário, a jovem debutante já recebe regalos, dos quais destaco, pelo simbolismo, o esquartejamento da Praça do Relógio, localizada nas proximidades do shopping Flamboyant.

No local da Praça do Relógio, no entanto, não há ritual debutante algum. O rito é fúnebre. Sob o pretexto de melhorar a fluidez na Avenida Jamel Cecílio, estriparam não apenas um cartão postal da cidade, mas um espaço público cuja função o pensamento míope da administração municipal não consegue entender.  Um conhecido urbanista norte-americano, chamado Kevin Lynch, fez um belo estudo sobre a percepção das pessoas que circulam nas cidades americanas. Uma cidade rica em estímulos sensoriais é aquela, segundo o urbanista, abundante em pontos marcantes. As praças são, essencialmente, pontos marcantes, pontos de referencia, pontos de encontro, pontos de conforto térmico, pontos de pausa primordiais no ordenamento do espaço urbano de qualquer cidade desse planeta. Aquela modesta praça, com uma área de aproximadamente 2.800 m2, uma verdadeira ilha na imensidão de prédios que se insinuam para o céu, não atrapalha a cidade. Seu pecado foi o mesmo daquelas mulheres que, por azar do destino, encontraram Jack em um beco escuro de Londres.

O tamanho, em se tratando de uma praça, não é documento, dirão os franceses que frequentam a Praça Furstemberg, na margem esquerda do Sena. Naquela minúscula praça, passantes, turistas e ciclistas convivem em harmonia com quatro árvores que resistem ao tempo. Imagino o que os parisienses poderiam inventar em um espaço público de 2.800 m2. O preservariam com intransigência

Ao contrário dos argumentos oficiais, a Praça do Relógio funcionava como uma espécie de amortecedor para a circulação rápida que, logo abaixo, no cruzamento da Avenida J com a Avenida Jamel Cecílio, apresenta ares paulistanos. A distância de 220 metros que separa esse cruzamento da Praça do Relógio não justifica esse tipo de intervenção. Reportagem do dia 17/10/2015, do jornal O Popular, desvenda o segredo dessa intervenção ao revelar que o Shopping pagou pela obra, como medida mitigadora de sua expansão. A natureza da intervenção, portanto, traduz didaticamente que o interesse privado comanda a cidade, pois jamais uma medida mitigadora poderia implicar em destruição de um espaço público. Certamente, para o referido shopping, é melhor evitar qualquer barreira entre a cidade e o acesso aos seus portões. Para os motoristas restará mais uma reta quente e lenta, com muitos carros e monóxido de carbono para alegrar o dia.

A cada dia somos surpreendidos por intervenções no ordenamento do uso e ocupação do espaço da cidade que são próprios de um modo autoritário de gestão. A administração pública divulga essas intervenções como tradução da vontade coletiva ou mesmo como produto de estudos técnicos que, ironicamente, nunca são divulgados. Que estudo, de fato, motivou o esquartejamento da Praça do Relógio? Nosso governo municipal, tal qual Jack da Londres Vitoriana, gosta de consumir as coisas por partes e por isso mesmo estripa, cotidianamente, nossa querida debutante.

A jovem debutante, na noite do baile, não estará feliz. Não conseguirá esconder, no momento da valsa, o desprezo pelo parceiro que a estripou. As cicatrizes de sua curta história não se apagarão com a meia noite, como no conto de fadas. A ingênua debutante guarda a esperança que em outubro de 2016 possa aparecer pretendentes que a tratem com mais respeito e carinho.

Texto escrito por Tadeu Alencar Arrais

Originalmente publicado em O Popular, Opinião