Paris mudou! Porém minha melancolia
É sempre igual: palácios, andaimes, blocos,
Subúrbios, em tudo eu vejo alegoria,
Minhas lembranças são mais pesadas que rochas.
Charles Boudelaire, O cisne. As flores do mal.
Partirei de uma premissa relativamente simples. Goiânia, entre todas as capitais brasileiras, ainda é aquela que melhor reúne ativos ambientais, econômicos e sociais que podem viabilizar uma gestão urbana comprometida com a coletividade. Os problemas próprios do modelo de urbanização brasileiro, a exemplo do déficit habitacional e da imobilidade urbana se manifestam em Goiânia em escala nada comparável às cidades de São Paulo, Salvador, Belém, Recife, São Luís, Brasília etc. É difícil, admitindo essa premissa, compreender os motivos pelos quais paira na cidade uma insatisfação generalizada. Lixo nas ruas, bueiros entupidos, venda de áreas públicas, praças deterioradas pela ação do tempo e consequente falta de manutenção são apenas alguns dos aspectos motivadores dessa insatisfação. É fácil, admitindo essa premissa, compreender porque uma espécie de nostalgia em relação às administrações pretéritas também frequenta as rodas de conversa nos vários cantos e bares da cidade. As praças eram floridas no tempo de Nion Albernaz, dizem uns. Os bosques, quando Darci Accorsi era prefeito, eram um capricho só, alegam outros. O governo Pedro Wilson teve a coragem de implementar programas de regularização fundiária nas áreas centrais da cidade, lembra um morador da antiga Ciclovia. Existem aqueles que até recordam Venerando Freitas, que governou nossa cidade na década de 1930 e na década de 1950. Recordar o passado com tanta frequência é uma forma eficiente de criticar o presente. Essa é a fala da cidade, mesmo alguns se recusem a escutar.
Mas em que os problemas de Goiânia são distintos daqueles registrados nas demais capitais brasileiras? São distintos, até agora, na intensidade. Vejamos Goiânia à luz dos chamados Aglomerados Subnormais, definição que o IBGE utiliza para classificar áreas com problemas de regularização fundiária e ausência de equipamentos e serviços públicos. Genericamente essas áreas são adjetivadas de favelas. Em 2010, foram computados 06 desses Aglomerados Subnormais em Goiânia, abrigando uma população total de 3.495 habitantes. Alguns deles são conhecidos, a exemplo de área denominada de Emílio Povoa, na Avenida Goiás ou do Quebra Caixote, no Setor Universitário. Para se ter uma ideia, em Brasília, os Aglomerados Subnormais abrigavam, em 2010, 133.556 habitantes, em Cuiabá 51.055 habitantes, em Porto Alegre 192.843 habitantes, em Belém 758.521 habitantes e no Rio de Janeiro 1.393.314 habitantes. A maior parte das pessoas que vivem nesses Aglomerados Subnormais residem em áreas com declividade acentuada, nas margens de córregos, rios, lagos, em manguezais, debaixo de linha de transmissão e, quase sempre, sem esgotamento sanitário e coleta de lixo. Mas se os problemas de Goiânia não chegam perto daqueles registrados nas demais capitais brasileiras, o que justifica essa percepção tão negativa de nossa experiência urbana?
O motivo das inquietações cotidianas nasce da percepção de que os problemas se agravam em progressão geométrica, enquanto as soluções sequer chegam perto de uma progressão aritimética. A inércia da atual administração só é rompida pela mobilização de esforços que é capaz, pasmem, de reunir energias para colocar em votação o projeto de reajuste do IPTU na noite de um domingo qualquer. Temporalmente, o atraso de uma década na atualização da Planta Genérica de Valores coincide com uma clivagem na história político-administrativa de nossa cidade. Não é por acaso que aquilo que estão chamando de progressividade no IPTU não passa de um engodo que não penaliza, de forma alguma, o rentismo fundiário, um dos maiores problemas que se anuncia para o futuro de nossa cidade. Não é por acaso que assistimos, na última década, os ataques mais perversos ao espaço público por parte do governo municipal, como exemplo inconteste de sua submissão ao mercado imobiliário. Não é por acaso, portanto, que a nostalgia tenha uma justificativa concreta que é, sem sombra de dúvida, uma imagem positiva sobre a nossa experiência urbana, construída quando éramos jovens e crianças e ainda conseguíamos pedalar nas ruas do setor universitário ou mesmo colher flores em nossas praças.
É essa imagem bucólica, alegre, simpática, acolhedora, só possível de ser construída em lugares públicos como praças, bosques, calçadas, alamedas, que Alice e muitas outras crianças e jovens de nossa cidade não terão oportunidade de experimentar. Uma pena, pois não terão referências espaciais e temporais que possam indicar que essa foi, outrora, uma boa cidade. Ao estudarem a história de Goiânia notarão que, em algum lugar nos últimos dez anos, fizemos a opção por uma cidade cada vez mais fragmentada. Essa cidade fragmentada, modelo urbanístico do atual governo municipal, ambiciona romper com as experiências urbanas que só a diversidade de uso do espaço público permite. A cidade fragmentada, emblema divulgado nas redes sociais pelos figurões do governo municipal, que muito entendem de urbanismo e pouco sabem sobre o que acontece na cidade, se julgam portas vozes dos desejos coletivos até o dia em que própria experiência urbana disser, nas ruas ou mesmo nas urnas, o contrário. Esse será um daqueles dias que lembrarei com alegria. Nesse dia, prometo, esquecerei em um dos bancos da Praça Cívica o livro Flores do mal, do poeta Charles Baudelaire. Na folha de rosto grifarei: cada cidade tem o Haussmann que merece.