Necrópole Goiânia

O lixo e a pedagogia da chantagem

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O lixo e a pedagogia da chantagem

“Sei perfeitamente que meu império apodrece como um cadáver no pântano, que contagia tanto os corvos que o bicam quanto os bambus que crescem adubados por seu corpo em decomposição. Por que você não me fala disso? Por que mentir para o imperador dos tártaros, estrangeiro?” (Ítalo Calvino, Cidades Invisíveis.)

Em poucas semanas, promete o governo municipal, a crise do lixo acabará. As ruas estarão limpas e as rotatórias, para azar dos roedores, deixaram de acumular sacos pretos. O problema do lixo, decerto, será contornado. A verdadeira questão, contudo, não é o que lixo revela, mas sim o que o lixo esconde. É por esse motivo que defendo a ideia de que a irregularidade na coleta de lixo foi e é providencial para o governo municipal. Não se trata de uma conspiração, de algo pensado em gabinetes, mas da convergência de duas situações que tornaram esse colapso funcional para o governo municipal.

A primeira situação é a eclosão da crise administrativa da Comurg que, em tese, culminou com as sucessivas falhas na coleta de lixo em toda cidade. A segunda situação é a insustentabilidade financeira manifestada pela ausência de investimentos e até mesmo o comprometimento do custeio da máquina administrativa. A segunda situação, não tenham dúvidas, é mais grave, justamente porque compromete o futuro da cidade.

É a primeira situação, entretanto, devido a sua visibilidade e aos odores quase medievais que exalam de diversos cantos da cidade, que preocupa a maior parcela da população. A visibilidade do lixo, portanto, serviu e ainda serve como um estratagema para camuflar os problemas descritos, com rara coragem, por Cairo Peixoto, então secretário de Finanças do governo municipal. Mas com a limpeza da cidade, ainda restarão os problemas financeiros resultantes de uma administração pouco ortodoxa que passa, como nunca antes na história dessa cidade, a utilizar a chantagem como substituta natural da política.

Na Câmara Municipal a chantagem se manifesta na relação com a base de sustentação política que deve aderir, sem discussão, aos projetos que tem como único objetivo aumentar a receita do governo municipal. Na lista de projetos estão aqueles que tratam da venda de áreas públicas, da Operação Urbana Consorciada do Jardim Botânico e da reforma administrativa.

Os dois primeiros entregam, literalmente, parcelas da cidade para os grandes grupos imobiliários, o que vai gerar mais despesas para a cidade. Já o último, mais do que uma reforma estrutural, é a demonstração clara que os compromissos com a base de sustentação impedem qualquer tentativa de reduzir o custeio.

O cotidiano provou que a criação de inúmeras secretarias e autarquias não significou aumento na qualidade dos serviços prestados para a população. Contudo, funcionou como isca para abrigar correligionários da base aliada que agora cedem a chantagem para a aprovação de projetos nocivos para a cidade.

No funcionalismo público municipal a chantagem se manifesta do modo mais perverso, com regular ameaça de atrasos e cortes de salários de funcionários efetivos e comissionados. A folha de pagamento, como sempre, aparece como a vilã. A contenção de salários, não tenham dúvidas, nunca atingirá o cume da pirâmide. Aliás, as denúncias de supersalários, que antes faziam parte do folclore da oposição, agora aparecem com assiduidade na mídia. Enquanto isso, os agentes da Secretaria Municipal de Trânsito (SMT) lutam por melhores condições de trabalho, assim como a Guarda Municipal de Goiânia e vários outros segmentos da administração pública.

Para a cidade, a chantagem se manifesta pela constante alegação de que a redução e/ou ausência dos investimentos em educação, saúde, mobilidade urbana e infraestrutura tem relação com uma espécie de herança maldita. Os tradicionais programas na área de educação para o trânsito ou mesmo programas que estimulem a educação ambiental desapareceram da agenda do governo municipal. As operações tapa-buracos não conseguem vencer a previsível força da chuva e as crateras causam prejuízos cotidianos para a população. A política de mobilidade é representada por uma rede de ciclovias fragmentadas que colocam em risco a segurança de ciclistas.

O município de Goiânia parece, cada dia, mais semelhante ao império de Kublai Khan, personagem de Ítalo Calvino. Mas ao contrário do imperador dos tártaros, que sabia da penúria do seu império, nosso governo não tem humildade suficiente para reconhecer os problemas cotidianos de nossa cidade. Sobra-lhe, no entanto, aquela arrogância histórica que já derrubou imperadores mais simpáticos e mais competentes.

 

Tadeu Alencar Arrais é professor associado do Instituto de Estudos Sócio-Ambientais (Iesa)/Geografia da Universidade Federal de Goiás (UFG) (tadeuarrais@ibest.com.br)

Texto escrito por Tadeu Alencar Arrais

Originalmente publicado em O Popular, Opinião, 20/05/2014