Reportagem publicada no dia 27/05/2014, página 3, no Jornal Diário da Manhã, exibiu a seguinte manchete, alimentada por fontes do Governo Municipal: “Residencial Humaitá tem oito áreas públicas”. O mapa utilizado para ilustrar a reportagem, cedido pelo Governo Municipal, induz o leitor a desqualificar o pleito dos moradores que iniciaram a urbanização de uma área pública municipal de 10.525 metros quadrados. Alguns pontos, para o bem da cartografia, merecem ser destacados na leitura do mapa divulgado (figura 01):
a) A não representação do canal do Córrego Caveiras no quadrante D mascara a realidade ambiental da área, tratando esse canal e sua APP (Área de Preservação Permanente) como parte do conjunto de áreas públicas do bairro Humanita. Ainda nesse mapa são incluídas as APPs do Rio Meia Ponte como Área Pública Municipal. A quase totalidade do quadrante B, assim como parte significativa dos quadrantes C e outra parte do quadrante D, se encaixa na definição de Área de Preservação Permanente. O motivo é simples. Como consta no Código Florestal, Artigo 4: as faixas marginais de qualquer curso d´água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha até o leito regular, em largura mínima de 50 (cinquenta) metros, para os cursos d´água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta) metros de largura devem ser preservadas. Portanto, de posse de um compasso, é fácil perceber que a área destacada de encontro entre o Córrego Caveiras e o Rio Meia Ponte é, na quase totalidade, Área de Preservação Permanente, o que significa que não pode ser urbanizada com equipamentos públicos e/ou áreas de lazer, como pode ser visualizado na figura 02. Difícil perceber esse dado apenas com o mapa divulgado, uma vez a parte do Córrego Caveiras do quadrante D, que se encontra com o Rio Meia Ponte, intencionalmente, não aparece no mapa divulgado pelo Governo Municipal. Um erro nada banal que, associado ao conhecimento sobre a declividade do terreno, poderia indicar os limites ambientais para densificação dessa área e a razão de sua destinação para Área de Preservação Permanente.
b) Outro ponto interessante, resultante da leitura do quadrante C, refere-se a representação cartográfica da área do Córrego Caveiras. Ali a representação cartográfica valeu-se da demarcação da Área de Preservação Permanente, mesmo sem incluí-la na “legenda”, o que induz o leitor a acreditar na possibilidade de ocupação domiciliar da área. Curioso é que a mesma preocupação não foi demonstrada na outra margem do córrego Caveiras, que fica no limite da área do Shopping Passeio das Águas. Isso ocorre pelo simples fato de que o padrão de ocupação da margem norte (área do Humaitá) será o mesmo, no futuro próximo, daquele registrado na margem sul (Shopping), o que significa repetição de problemas previsíveis, dado a inclinação do terreno e a proximidade das áreas de inundação.
c) Outro ponto não demonstrado no mapa são as edificações na vertente Sul do córrego Caveiras. Isso demonstraria, por exemplo, as diferenças entre as áreas descontínuas do quadrante A em comparação ao quadrante C. Ora, basta observar as dimensões das áreas para comprovar qual é a melhor opção para edificação de equipamentos públicos, de uma praça, mas também, para construção de condomínios verticais, já que, com a desafetação, os parâmetros urbanísticos foram alterados, o que comprova o interesse do mercado imobiliário. O que o mapa divulgado não mostra são as diferenças altimétricas de uma área encaixada em uma vale, assim como as facilidades de acesso da população para a área C. A importância dessa área para preservação e limitação das densidades resulta de sua proximidade da Área de Preservação Permanente. Verticalizar aquela área, como indica o PL-50, é condenar o Córrego Caveiras ao assoreamento, além de reduzir drasticamente a áreas de infiltração, isso sem contar os problemas com o escoamento pluvial.
d) Outro problema, que justifica a venda das áreas, na argumentação do Governo Municipal, é a densidade. Todos sabem que o residencial Humaitá, justamente pelas dimensões, não é um dos bairros mais populosos de Goiânia. A reportagem cita que o bairro possui 644 habitantes. Esqueceu-se de dizer que os equipamentos públicos de saúde e educação, bem como as áreas de lazer não atendem apenas os moradores do bairro, mas também de toda a região. Segundo dados do Censo Demográfico do IBGE (2010), os seis setores censitário limítrofes da área desafetada, em 2010, abrigavam uma população total de 6.073 habitantes. Em um raio de 1,5 km a partir da área desafetada, a população aumenta expressivamente. O mapa não destaca, por exemplo, a população do Jardim Ipê e insere a maior parte do Humaitá, propositalmente, para a parte Leste da Avenida Goiás. O que a reportagem oculta é que a região Norte, cujo acesso principal é a Avenida Goiás, é uma das regiões mais populosas de Goiânia e com déficit de equipamentos públicos de saúde e educação, além de espaços de lazer. Também não mostra as dificuldades de acesso a partir da Avenida Goiás, cuja calha de 30 metros, associada ao fluxo intenso de veículos e uma curva em declive de 90 graus, impede o deslocamento para os quadrantes D e B.
Um geógrafo francês, chamado Yves Lacoste, sempre chamou atenção para o que os mapas podem esconder, para as estratégias que brotam de uma prancheta com intenções pouco ortodoxas. A semiologia utilizada, com as manchas vermelhas destacando as “áreas públicas”, leva o leitor a imaginar que existem várias áreas públicas no bairro. Esse exemplo se encaixa perfeitamente ao mapa divulgado pelo Governo Municipal no Jornal Diário da Manhã. O mapa, intencionalmente, não diferencia as áreas publicas primitivas resultantes do parcelamento original do Humaitá, das Áreas de Preservação Permanente, que não podem ser objeto de desafetação. Essa discussão, por mais ou menos técnica que pareça, não muda o seguinte fato: a comunidade urbanizou uma área pública municipal, com os devidos cuidados ambientais e sem nenhum custo para o Governo Municipal que não reconhece o trabalho comunitário e condena, a um só tempo, a participação democrática e a sustentabilidade ambiental. A comunidade levou ao extremo o que já chamaram de Direito á Cidade. Fico, cada dia, mais orgulhoso de participar dessa empreitada.